sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

narrativa da aventura surreal daquela amiga



narrativa da aventura surreal daquela amiga

sexta-feira, atravessou ruas do bairro na calada da noite carregando sua própria bebida rumo ao bar que frequentava, onde esvaziou sozinha a garrafa de vinho chileno, acompanhada de azeitonas e torresmos e mais duas doses da sua cachaça de alambique preferida, curtida na umburama, entre galanteios de um bonito jovem adúltero e de um velho baixinho assanhado que, cumprindo as ordens do proprietário do estabelecimento, a levou para casa, não sem confessar no caminho seus ciúmes, mesmo sem nenhuma esperança de qualquer aproximação entre eles, o que a fez manifestar seu costumeiro desdém disfarçado de compaixão, da qual ela nem se lembraria logo ao deitar-se, pois precisava desconcentrar-se do desejo avassalador por uma convocatória via torpedo, não conseguido graças ao consumo total dos bônus da operadora de celular com seu amigo carente até o dia clarear, quando percebeu o som do despertador confundindo-se com os motores dos carros na rua, a cidade acordando, a boca amarga, a tontura ao fechar os olhos sob o chuveiro e a ligação telefônica daquela que seria a prova de sua ainda inconsciente superação de limite: o dono do bar perguntando se havia chegado bem.

desligou o telefone e pediu que a acordassem somente na segunda-feira às 7h18.

BGN, 20/01/2012 (editado em 23/01/18)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Paxá (06/01/94 – 21/03/11)

Hoje é o Dia dos Santos Reis Magos. Há dezoito anos, em 1994, nasciam o Paxá e a Koca, filhos do Cookie, o cão mais inteligente do mundo.
A princípio, escolhi a fêmea, mas a dona da mãe deles (uma poodle branquinha, com pedigree registrado, cujo nome não me lembro), não queria o macho.
Paxá veio pra mim no 35º dia, após desmamar.
Ainda sem nome, foi chamado de Belchior, Baltazar, Gaspar, Floquinho, Bolinha, e outros nomes bizarros, até mostrar-se um verdadeiro sultão, deitado com as patinhas ao redor das vasilhas, mergulhando a boca na ração ou no leite até dormir saciado e imóvel. No dicionário encontrei a descrição perfeita: Paxá, do persa pâdshâh, título não hereditário de governadores e vizires, no antigo Império Otomano; sultão; poderoso.
Era uma bolinha de pêlos pretos e quando estava dormindo era impossível distinguir onde estava sua cabeça. Acordado, só a língua vermelha destacava.
Morávamos em Piracicaba e Ituverava. Eu me graduando em Engenharia Agronômica, em Ituverava, e fazendo meu Trabalho de Conclusão de Curso no laboratório da ESALQ/USP, em Piracicaba.
Paxá ía comigo, dentro de uma mochila de couro, sempre encantando os que o descobriam ali quietinho, no ônibus ou nas caronas.
Até Guaratinguetá, onde ainda moravam meus pais e irmãos, eram 6h30 de viagem. Se eu não mostrasse, ninguém notava sua presença.
Concluído o curso, iniciei as aulas de mestrado como aluna especial e nos mudamos definitivamente, em 1995, para Piracicaba. Fim das viagens semanais, porém eu dava aulas como professora substituta nos colégios estaduais de manhã e à noite, e estudava à tarde, enquanto Paxá comia o estrado da cama, os pés (somente os esquerdos) dos chinelos, as meias (e engolia!), a escova de lavar roupa (ui!), e fazia xixi em cima de fotos, tapetes e tênis.
Uma vez me irritei e ameacei doá-lo à fábrica de sabonetes Phebo. Ele se escondeu atrás da porta e registrei a foto mais lindinha dele, entre pedidos de desculpas.
Quando desisti do mestrado, veio a primeira depressão. 8 dias e noites sem me mexer, sem tomar banho nem comer. Só me levantava para colocar ração e água pra ele. No sétimo dia a ração acabou. Tive que juntar forças um dia inteiro para sair para comprar algo e fui reconhecida por um colega esalquiano. No hospital, minha pressa era me recuperar logo para revê-lo.
Meu pai me buscou e acolheu, a princípio cheio de restrições quanto ao "cachorro ficar dentro de casa". Mas ou ele ficava dentro ou eu ficaria fora com ele!
Por uma fresta da porta, o Paxá ficava horas de namorinho com a Bony, uma vira-latas velhinha que foi o seu único amor. Ela faleceu enquanto ele ainda estava em Guará, e ele continuava na mesma fresta tentando sentir seu cheiro, resmungando baixinho sua falta.
Fui contratada para trabalhar em São Paulo. Diante da promessa de grandes ganhos, deixar o Paxá sozinho de segunda a sexta e visitá-lo nos finais de semana seria uma situação temporária e suportável.
Enquanto fazia esforços para convencer minha avó a me permitir trazê-lo para o apartamento, casei e mudei.
O novo apartamento era enorme e tinha uma sacada que o abrigaria confortavelmente. Mas agora o trabalho de convencimento havia aumentado exponencialmente: além da restrição do meu companheiro, meu pai e minha madrasta (hoje ex-madrasta) dormiam com ele SOBRE a cama e a cada final de semana que eu ía para resgatá-lo, choravam e pediam um novo prazo para se acostumarem com a idéia de deixá-lo ir.
O tempo foi passando, foi ficando mais difícil, e fui convencida a comprar um substituto - como se isso fosse possível.
Quando me mudei para Santa Rita do Passa Quatro (estado de São Paulo), a escolha pela casa foi em função da sua volta ao meu convívio. O quintal e a edícula seriam dele e da Petit, recém-chegada. Enquanto eu estivesse em casa, estariam ao meu lado. Ou no meu colo, ou eu no chão com eles.
Também estava junto este tempo todo a Luga, minha tartaruga, um ano mais velha que o Paxá, e que finalmente sairia do aquário para um terrário enorme que eu mesma construí, com uma piscininha com peixinhos nadando, rampa para subir para a terra, plantinhas...
Dizem que os animais "puxam" pela personalidade de seu dono. Paxá veio para mim quando eu ainda era praticante de yoga, mastigava 45 vezes a cada garfada, era tranquila e atenta. Já a Petit era brava e estressada, assim como eu no auge do meu sucesso profissional e fim do casamento.
Ela era minúscula perto dele, mas o suficiente para infernizá-lo com seus já 7 ou 8 anos de vida. Não podia vê-lo deitado que mordia seu rabo e orelhas, latindo como chamando para uma briga. Bastaria uma bocada dele para pôr fim àquele duelo, mas ele sempre optava por se levantar e mudar silenciosamente de lugar. Às vezes ainda com ela pendurada pela boca grudada nos pêlos de sua orelha, grunhindo sem cessar.
Em 2003, viemos para São José dos Campos: Paxá, Petit, Luga e eu. Dia seguinte à mudança para o apartamento, levamos a Luga para o sítio do meu pai. Com uma tela de galinheiro, cerquei aproximadamente 5 metros quadrados de área seca e com água e orientei o caseiro a dar ração dia sim, dia não, até que se ambientasse e pudesse se alimentar sozinha dos peixes do lago.
Conta meu pai que periodicamente vai ao lago, chama seu nome e aparecem 5 a 6 cabecinhas. Uma vez eu vi e chorei copiosamente.
Com Paxá e Petit no apartamento acarpetado, tive que iniciar uma rotina intensa de passeios. Paxá, apesar de seu histórico de cinomose, leptospirose, pneumonia e outras doenças que superamos com muita dedicação, amor e remédios, ainda estava muito saudável, enxergando bem e fazendo amizades por onde passava com sua inseparável bolinha.
De cara, todos ficavam encantados com o diminuto tamanho e grande beleza da Petit. Um quilo e duzentos gramas de pêlo abricot, vencedora do primeiro lugar no único concurso de cães do qual participou. Mas sua intolerância e irritabilidade logo desviavam a atenção para aquele grande, amável e pacato companheiro disposto a correr repetitiva e insanamente atrás das bolinhas que jogassem. Até fazer feridas nas patinhas e eu precisar intervir para interromper a brincadeira.
Aos 5 anos e meio, numa difícil fase da minha vida, Petit faleceu de uma grave inflamação no útero. Chegando da clínica veterinária, Paxá veio me cheirar. Contei a notícia baixinho, com a voz ainda embargada, e ele correu para debaixo da mesa da cozinha, como se tivesse levado uma enorme bronca. Não saía de lá e não quis se alimentar por dias.
Até que um amigo nos convidou para ir a uma cachoeira espantar a tristeza.
Recuperou-se e éramos novamente eu e ele nesse mundão.
Fundo do poço, desempregada e despejada do apartamento, fomos nos mudando: uma edícula de fundos no fundo do Novo Horizonte, uma edícula estranha com uma pessoa estranha no Sul da Zona Sul, um abrigo com pessoas amigas e gatos nem tanto, outro fundo dos fundos e sua saúde piorando.
Sua visão foi diminuindo, a audição se tornando quase imperceptível, os passos ficando menos flexíveis, mas ainda frequentávamos a noite cultural joseense e das redondezas. Íamos à praia, às montanhas, aos bares... Foi nomeado o cão mais boêmio dessas terras!
Cada vez mais preferia ficar dentro do carro, seu local preferido neste mundo.
- Seguuuuura, Paxá! - eu sempre repetia quando não via um obstáculo na rua, e isso sempre acontecia enquanto eu dirigia. Quando mais jovem, ele se firmava no banco, como quem se prepara para subir numa montanha russa. Com o tempo, foi ficando mais difícil e às vezes caia no assoalho e levantava-se em seguida, meio constrangido. Com o tempo, caía e preferia não se levantar para não correr tanto risco. Com o tempo, viajava no chão, mais seguro.
No seu último ano, sem ouvir, nem mais enxergar e mais teimoso do que nunca, fomos acolhidos numa casinha muito simpática, com um dono simpático e muito amoroso que não poupava esforços para agradá-lo. Sentava-se ao seu lado e passava horas fazendo carinhos em sua cabeça, como eu já nem ousava mais fazer, tamanho o medo que me afligia por saber de sua ausência anunciada.
De volta da nossa última viagem à praia, sua saúde foi sucumbindo cruelmente. Internações, remédios, soro, fraldas, não poupamos esforços nem tempo nem dinheiro para amenizar seu desconforto. Revezávamos nos cuidados, forramos o chão com material anti-derrapante doado por um querido amigo, abrimos mão das curtições dos finais de semana e até do feriado de Carnaval.
Mas o sofrimento não seria tolerado!
Em 21 de março de 2011, o veterinário que o acompanhava, consternado, fez um discurso exaltando toda a dedicação e lamentando a ineficiência do tratamento diante das sucessivas convulsões e complicações.
A dor não seria permitida!
Errei. Pedi 10 minutos a sós com ele. Errei. Deveria ter pedido mais um mês, uma semana, um dia que fosse. Errei.
É meu único arrependimento.

Não nos mudamos para a caverna. Fui sozinha.
Sozinha passei minhas primeiras férias, meu primeiro Natal e primeira Virada de Ano sem ele. E hoje seu primeiro aniversário distante.
Ainda virá meu primeiro aniversário, o primeiro carnaval... algumas frustrações e conquistas que não serão compartilhadas.
Mas amanhã será o primeiro dia do fim do meu luto.
De agora em diante, só as lembranças e sensações boas.
Para que ele descanse em paz. E eu sinta alegria cada vez que sentir seu cheiro pela casa e uma saudade boa me lembrando todas as noites do seu ronco baixinho embaixo da minha cama.